UM DESENHO POR SEMANA

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A Grande Sala


Naquele Lugar discutia-se sobre tudo. Todos tinham opinião, pensavam, viam, liam, sabiam. Quando não sabiam, falavam sobre como se soubessem. Passavam horas assim. Prestando e atraindo a atenção soberba dos primeiros cinco minutos. Afinal, esse era o tempo que todos gastavam falando dos assuntos, cinco, seis, minutos de cada um sobre cada tema. A questão é que numerosa era a quantidade dos que se reuniam ali. O lugar não fora criado para aquilo, mas surpreendentemente os microfóruns de debates foram acontecendo pouco a pouco e de repente metade da cidade se reunia toda semana por ali. Os debates eram regados ao que se quisesse, bebidas, comidas, charutos, ou o que mais surgisse. Tudo era permitido desde que se fizesse em qualquer das salas privadas em volta da Grande Sala, como chamavam o lugar. Mas ninguém queria ficar longe da mesa central. Na sala principal alguns elementos eram liberados, e assim também passavam a ser motivo para discussão sobre essa diferença. A seleção de debatedores era a mais heterogênea possível. As conversas começadas em guetos, grupos por afinidade, acabaram por extrapolar o conforto do discurso aos semelhantes. Pessoas que dificilmente conversariam no dia a dia passaram a ouvir as opiniões uns dos outros. Clérigos misturavam-se a políticos, que debatiam com comerciantes e fazendeiros engalfinhavam-se verbalmente com docentes da universidade local.



Ainda que nenhuma conversa evoluísse para um aprofundamento real e talvez mais particular, chegou um momento em que essa liberdade no falar de todo tipo de pessoa confrontando aos outros e a si mesmos começou a ser limitada.


Devido ao número crescente de debatedores surgido, Moderadores foram criados e o grande salão começou a passar por mudanças. A grande mesa que fica ao centro e no princípio era o ponto no qual todas as discussões começavam, deu lugar a diversas outras com seis lugares. Quando a discussão em uma dessas estações acalorava-se, cadeiras eram arrastadas para lá, e grupos formavam-se em volta, debatendo sobre o debate que assistiam.


Os Moderadores eram debatedores que tinha o dom da oratória, e se destacavam por seu discurso, independente de sua conduta junto a todos os outros. Um aqui outro ali, começaram a se identificar e formar um grupo que semana a semana ficava mais próximo, discutindo sobre o próprio grupo. Numa das reuniões decidiram que algumas mudanças precisavam ser feitas.  A decentralização das discussões os preocupava. De repente perceberam que o controle de qualidade que exerciam no grupo seria diminuído. Uma das soluções aventadas por um dos Moderadores mais influentes foi o convite a novos membros que se destacassem nos debates vindouros. Por um breve tempo o remédio surtiu efeito. O grupo dos Gerais, como os autoproclamados líderes chamavam os debatedores não-Moderadores, crescia dia a dia e convidar mais membros para moderar acabaria por diminuir a qualidade do controle.

Foi então que a dupla inicial de moderadores teve a ideia. As reuniões agora seriam temáticas. A qualidade da discussão seria garantida pela qualidade do tema. Todos os assuntos seriam decididos por eles e multiplicados de uma maneira que os Gerais não percebessem o controle. A ideia era que cada um dos Moderadores ficasse próximo de determinados debatedores Gerais e lançassem a discussão de maneira não aberta, fazendo-os pensar que eram parte do seleto grupo de Moderadores. Com o sentimento de orgulho por teoricamente ter criado um tema a ser discutido, os Gerais acabariam por fomentar as mesmas discussões em suas mesas.

E a ideia funcionou. Em pouco tempo diversos Gerais passaram a ser respeitados como criadores de temas por seus pares, sem perceber que na verdade apenas multiplicavam os temas propostos pelos Moderadores.

O equilíbrio artificial funcionou por muito tempo. Até que um dia a convite de um Geral, um Novo Debatedor começou a frequentar a Grande Sala. Lacônico, não entrava nas discussões, encerrava-as com sentenças cortantes que deixavam os participantes atônitos. Não queria ter razão, pelo contrário, sua oratória econômica, desprovida de retórica, era uma navalha que não deixava certezas intactas. Talhava-as usando apenas uma arma, a dúvida. Não era uma dúvida vazia, ou um questionamento adolescente. Era um desejar ir além sem necessidades de provar qualquer coisa para alguém. O corte era preciso, sem pantomimas, trejeitos ou espetáculos, o que deixava adversários no debate e audiência sem fala. Sua performance discreta e incisiva conquistava mais e mais admiradores a cada debate,  causando um desconforto nos Moderadores, que passaram a observá-lo.

O Novo Debatedor continuou indo por mais algumas semanas e o descontentamento foi aumentando. Ele ficava por horas ouvindo todas as discussões, sentado, observando. De repente escolhia uma das mesas e terminava com o debate.  Enquanto alguns ansiavam pelo momento em que ele iria agir, outros desejavam que o novo e calado debatedor fosse embora. Esse sentimento começou a crescer. Os Moderadores não sabiam o que fazer. Não poderiam simplesmente expulsá-lo. O que ele havia feito de errado? Isso explicitaria o controle dos Moderadores sobre o que e como se discutia na Grande Sala.

Voltaram à mesma solução quanto à descentralização do debate. Aproximaram-se de alguns Gerais um pouco mais habilidosos e influentes e começaram a discutir sobre a beleza dos discursos, a preciosidade de uma oratória convincente, e uma retórica bem elaborada. Exaltavam o rebuscamento linguístico, o refinamento da argumentação embasada e as técnicas desenvolvidas após acuradas pesquisas e estudos.  Novamente a solução teve sucesso e obviamente virou um tema. Por um bom tempo as discussões tinham como tema os próprios debates, suas vertentes, regras, e a falta delas. O novo debatedor continuou frequentando várias das mesas por dias sem pronunciar palavra. As discussões começavam e terminavam, e ele continuava com a mesma expressão plácida em sua face, vez ou outra  modificada apenas por um levantar de sobrancelha.
Com o passar do tempo os debates começaram a parecer enfadonhos para a comunidade dos Gerais. Aos fins de cada um deles, todos automaticamente procuravam o rosto do Novo Debatedor, esperando por um corte de sagacidade desprendida na pasmaceira grandiloquente em vigência em todas as mesas. Ele permanecia impassível.

Ainda que preocupados, os Moderadores prosseguiam com a mesma estratégia de exaltar o debate.  Decidiram apenas mudar as mesas periféricas de lugar. Mudaram. Depois de um tempo  mudaram novamente. E de novo. Não adiantou.

A situação começou a ficar realmente desconfortável. Os debates que chegavam à Grande Mesa iam do nada para lugar nenhum. Os Gerais começaram a assistir com menos atenção as pelejas orais. Como se esperassem algo do Novo Debatedor, o olhavam a cada vazia frase de efeito pronunciada, cada hiato deixado por um dos lados. E eram os hiatos, tão apreciados pelo Novo Debatedor, que aumentavam a cada novo debate. O ardor pela réplica e a tréplica já não era mais o mesmo. Distraíam-se durante os debates, falavam de assuntos ordinários como o preço do leite ou do pãozinho, a roupa da filha do prefeito ou o clima.

Não havia mais como suportar. Gerais mostravam-se infelizes com o andar da atividade.  Os Moderadores não sabiam mais o que fazer, ainda que tentassem esconder o sentimento a todo custo. Foi quando em um dos debates, no meio de uma daquelas cortantes pausas,  um dos líderes  fora ferido pelo silêncio do fim de sua própria inócua dialética e o burburinho ofensivamente desinteressado dos assuntos cotidianos ao redor da Grande Mesa. O Moderador conteve o desespero pelo fracasso de mais uma noite e sussurrou olhando na direção do Novo Debatedor “Pelo amor de tudo o que é sagrado para você, por favor, fale!”       
O Novo Debatedor surpreendeu-se por um milésimo de segundo, como mostrou o movimento de sua sobrancelha rapidamente levantada. Pensou por pelo menos outros dez segundos, olhando para o reflexo da luz que incidia em seus sapatos. Suspirou e levantou de sua cadeira. Pegou seu casaco e começou a dirigir-se à saída. O Moderador, desesperado com a ausência da resposta e do que poderia ser a salvação daquele Lugar, bradava
“Não é possível! Você não vai dizer nada?” “Estou dizendo há tempos”, disse o Novo Debatedor. “E gritei tão alto que até você ouviu. Esse debatedor sai da Grande Sala.”

Enquanto a luz do poste da rua entrava pela porta, Gerais e Moderadores ficaram ali olhando-o  sair e atravessar a rua. Em meio ao silêncio, os sentidos de todos denunciavam, a partir de cada barulho, tom, cor, odor, cinza, migalha e copo vazio existente naquela sala, o que era aquele lugar e o  tempo que ficaram ali sem perceber.
Com o passar dos dias, como era de se esperar, os debates na Grande Sala foram cessando, dando lugar unicamente aos assuntos cotidianos daquele burburinho incômodo aos ouvidos Moderadores.  


Nunca mais viram o Novo Debatedor. Contava-se apenas entre os antigos frequentadores da Grande Sala, como se fosse uma lenda, que ele fora visto entrando em outro Lugar, sorrindo e falando pelos cotovelos.  

 

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